sábado, 17 de janeiro de 2009

EVOCAÇÃO

Alguns dos responsáveis portugueses já partiram e estarão agora a dar contas ao Criador dos seus nefandos actos, outros , ainda vivos, queira Deus puni-los com a severidade necessária já que a justiça dos homens, se eximiu das responsabilidades que lhe cabiam...



Quiseram as sortes que nos juntássemos na capital alentejana, essa velha "yeborah" mourisca onde apetece viver, para aí formarmos o batalhão de caçadores 4610/72 que rumaria à Guiné, tida na altura como a pior das três frentes de batalha numa guerra que o nosso país travava contra os chamados movimentos de libertação perfeitamente subjugados aos interesses dos países do bloco leste europeu, se bem que financiados também de forma absolutamente desinteressada por alguns estados nórdicos deste velho mundo que hoje muitos procuram uno, utopia mais que garantida dada a existência de estados com muitas centúrias de vida com povos que uma vez acordados desta anestesia a que foram submetidos por uns quantos políticos desprovidos de bom senso exigirão a reposição do estatuto anterior...

As dificuldades de recrutamento a nível de quadros sentiam-se de forma acentuada nas forças armadas que se viam obrigadas a usar manobras de recurso tais como o acesso de milicianos ao curso de capitães, e, no nosso caso, a entrega do comando do batalhão a um indivíduo perfeitamente desfasado da realidade da guerra do "bate e foge", uma vez que passara demasiado tempo nos quadros da paramilitar força da GNR, desconhecendo o imprescindível "savoir faire"inerente à condução de uma guerra de guerrilha como aquela que nos opunha na Guiné ao PAIGC desde o início da década de sessenta do passado século.

No dia aprazado, treze de Junho de 1972, feriado de Santo António, depois de uma breve especialidade com meia dúzia de disparos na carreira de tiro, umas quantas corridas visando alguma endurance, horas a fio de ordem unida e algum "blá-blá" ... livresco sobre um tipo de guerra completamente estranho a todos nós instrutores, lá embarcamos num voo baptismal para a maioria, chegando quatro horas depois à calorenta e húmida Guiné onde tentaríamos superar as dificuldades, esperançados num regresso a salvo, um ano e meio depois, que acabaria por se saldar afinal num quarteirão de meses prenhes de carências a todos os níveis e uma percentagem de perigosidade grande com vários ataques, alguns dos quais ao arame...

Recebidos com muitos "pius" (praxe é praxe...), lá suportamos o "trinado" até surgir alguém reconhecidamente mais novo que nós no território a quem pudéssemos dirigir igual piropo que nos consolava o ego, cientes de que cada dia passado representava o encurtar do tempo de permanência naquela terra de mosquitos e balas e consequentemente um acréscimo no que respeitava à probabilidade de sairmos ilesos, fisicamente, no fim da comissão...

A coloração da pele e as fardas novinhas em folha não enganavam ninguém...

Na primeira visita a Bissau( fim de semana da chegada) , deixando o ambiente da grande caserna que era o CUMERÉ, tiraram-se as fotografias tradicionais junto aos poucos monumentos existentes, às quais juntaríamos depois outras obtidas no quartel, armados até aos dentes , evidenciando o ar de guerrilheiros de pacotilha que qualquer Rambo actual não desdenharia, para enviarmos à família e amigos...

A cidade, capital que não passava do equivalente a qualquer " vilazeca" de quarta categoria no continente, tinha como locais passiveis de encontro uns quantos cafés com esplanada que nos proporcionavam a possibilidade de matar aquela sede atroz que nos assaltava bem como ir indagando sobre Bissum, a localidade para onde nos haviam destacado.

O suor escorria pelos corpos encharcando camisas e calções que o regimento permitia, uma vez que nada justificava o uso do traje civil, estampada que tinhamos no rosto a condição de "periquitos".

Mal nos sentávamos, surgia invariavelmente o jovem engraxador que teimava em limpar o pó, brilhasse ou não de graxa o calçado...
Um peso, um simples peso que fosse ajudá-los-ia a a ganhar a refeição do dia...

A companhia, segunda, era comandada por um joem capitão miliciano, aparentemente, e só isso, sem a endurance necessária para dirigir as quase duas centenas de homens que a compunham, acolitado por quatro alferes milicianos também, dois primeiros sargentos ( do quadro obviamente...) e quinze ou dezasseis furrieis, classe onde me incluia, cada um mais farto de tropa que o outro, onde na condição de milicianos pouco tempo para além do ano de serviço podíamos ostentar...
Isto para provar da nossa incipiência relativamente à função militar...

Acabaria por se sair bastante bem daquilo que fôra incumbido o homem que emprestara o seu nome à companhia, ganhando juz a um lugar na história, assim lhe queiram fazer justiça os seus colaboradores mais directos dando à estampa uma publicação onde se faça uma resenha exaustiva do trabalho da 2ª C.CAÇ do B.CAÇ 4610/72, o que nem seria difícil atendendo a que a sua condiçao de magistrado poderia abrir portas conducentes à recolha de informação reportando para além da condição estritamente bélica, a vertente social em que sempre se pautou por um relacionamento irrepreensível tyanto a nível de subordinados como de superiores hierárquicos, para além, evidentemente, da ligação da companhia às populações dos difrentes lugares por onde passamos, distribuindo simpatia e uma importantíssima quota de solidariedade, o que terá pesado, estou certo, na nossa saída precoce da mata do Cantanhez ao fim daqueles oito ou nove meses de extremo sofrimento.
Auscultar-se-iam alguns dos seus pares, subordinados, superiores, populares ainda vivos das localidades de aquartelamento onde a convivência salutar foi o sistema implantado, e far-se-ia justiça a um homem que soube garantir durante mais de dois anos , debaixo das difíceis condições condições que uma guerra sempre aporta, um espírito de corpo e de relacionamento entre todos que era digno de encómios.
A prová-lo estão estes almoços que em boa hora Cordeiro e Teixeira, arregaçando as mangas,
acabaram por tornar possíveis.

Aquando da semana de campo do IAO, "Os Terríveis" seriam alvo de uma visita do comandante da republicana que logo ali implicou com o carácter informal do vestuário que ostentávamos, quer ainda com a barba crescida que todos evidenciavam...
Muitas eram as preocupações que nos assaltavam para que o corte da barba tivesse merecido
um cariz de relevância.
O uso regular da lámina deixara de fazer parte do nosso quotidiano.
O bigode branco que hoje ostento é a prova disso mesmo.
Nunca mais o cortei!

A vida dos burocratas militares consubstanciava-se a uns copos de wisky, uns jogos de bridge, canasta, pocker ou mesmo a menos cotada sueca que os ajudasse a matar o tempo de comissão, para além de certas negociatas em que por vezes se envolviam e lhes proporcionavam chorudos ganhos.
Os tiros... raramente os ouviam porque não era hábito o ataque às CCS...
Casos houve, e estou a recordar uma situação muito ventilada de um comandante de batalhão que terá sido punido por Spínola porque mandaria colocar nas picadas, sacos d arroz e camuflaos completos à guiza de tributo que o IN assim corrompido recolhia, como garante para não atacar o quartel onde residia...
O nosso tratava-se de um "manga de alpaca", de um comandante de gabinete, de preocupações restringidas ao visual de parada onde a barba dos subordinados era inspeccionada "à lupa", como se isto pudesse constituir algo de relevante no comportamento do militar em situação de confronto directo, debaixo de fogo...

É preciso que mereçam usar as barbas que ostentam!
Importa que que imitem o antigo governador da Índia, afirmara...

Felizmente fomos enquadrados a outra cidade em termos administrativos ( de Bissorã para Bula, ou vice versa...) razão pela qual deixamos a subordinação directa a tão complicada e básica figura
( para usar a linguagem militar...)

Em Bissau, nos encontros de café com amigos ou amigos de amigos, íamos inquirindo se conheciam BISSUM, recebendo invariavelmente a informação que se tratava de "um buraco no cú de Judas" onde o verbo " embrulhar" era sistematicamente conjugado...
Sem nos tolher a capacidade de raciocínio, o medo foi-nos invadindo.

Rumamos então para BISSUM onde nos receberam com "pius" e alegria a rodos, pois isso significava a saída próxima dos que lá estavam e o seu consequente regresso à vida interrompida em Portugal no tocante a trabalho ou estudos.
A guerra fôra afinal um interregno nas suas vidas.
Para nós começava a contagem decrescente que esperávamos ver chegar bem depressa ao dia D.

Sem comentários:

Enviar um comentário